Bendito esquecimento
Desde quando levantei uma estrela recoberta de papel laminado na ponta de uma varetinha de madeira, vestindo roupinha de anjo e cantando “Glória a Deus nas alturas”, tenho uma vaga lembrança do que é guardar textos e recitações. Acredite, é muito comum haver um breve hiato em minha mente durante perguntas do tipo “O que você comeu no café da manhã” ou mesmo “Quantos anos você tem?”.
Por algum tempo isso foi motivo para cogitar a ida a algum médico ou psicólogo. No corre-corre da vida essa preocupação se perdeu em meio a tantas agendas, post-its, anotações nas contra-capas de Bíblias ou no enorme quadro-branco que tenho no escritório. Porém, essa preocupação dissipou-se definitivamente quando casei-me com a Dany. A Danex tem um dom. Na verdade, eu já o considero paranormalidade (rs). Minha amada consegue lembrar o que vestíamos no dia do casamento do meu amigo Leandro, qual a sandália que a Juliana foi e que horas saímos e chegamos nesse evento (ocorrido há pelo menos 10 anos). Nem preciso dizer que essa é uma arma poderosa em nossas discussões sobre quem deixou a luz acesa ou o bolo fora da geladeira – é claro que eu sempre perco! (rs)
A falta de memória chegou muitas vezes a me desmotivar por completo quando me vi na lida de compartilhar a Palavra de Deus em tantas igrejas por aí. Escravo do bendito esboço, sempre sonhei o dia em que não precisaria de um púlpito ou suporte para a Bíblia e o ipad. Sofria taquicardias quando o ventilador (maldito) passava as folhas da Bíblia. Me sentia o pior dos cristãos quando precisava recorrer à um versículo do qual não lembrava o endereço, nem o contexto, e muito menos o próprio texto, só sabia que se encaixava perfeitamente naquele ponto da mensagem.
Porém, uma brisa de esperança tem soprado em meu rosto nesses últimos meses. Não! Não tomei fosfosol, nem fui contagiado pelo super-poder da Dany. Pelo contrário, continuo gastando valiosos minutos na impressão de esboços e no desenvolvimento de um design que me lembre apenas o necessário – fagulhas da essência para que meu intelecto desenvolva o restante.
Eis a percepção idiota que me ocorreu. Como alguém que procura os óculos já bem posicionados em seu rosto, percebi que o que eu procurava era o que menos precisava. Entendi que eu não precisava lembrar. Precisava absorver!Uma mente que decora centenas de versículos, dogmas, regras ou estatutos pode ser uma mente brilhante do ponto de vista secular, mas no Reino de Deus isso não passa de vento. As verdades do evangelho da graça precisam ser absorvidas a tal ponto que eu não lembre de nenhuma delas, e esquecendo-as, passe a vivê-las em sua total intensidade. É como a marcha do carro que mudo sem perceber. Para ser mais poético, é como respirar. Não preciso raciocinar em que velocidade estou, qual a última marcha que coloquei ou mesmo “Onde foi parar essa marcha?”. Também não preciso dizer ao pulmão: “Ei, vamos lá! Força! Inspira. Expira. De novo…”. Eu simplesmente vivo!
Nesses últimos dias o evangelho tem penetrado a minha pele de tal forma que o perfume me dá uma agradável sensação de liberdade. Fiz da falta de memória minha aliada. Enquanto ela me sufoca, volto a livros que li. Vejo filmes que me emocionaram. Beijo a boca da minha amada, cujo sabor quase esqueço, mas que prontamente e gentilmente ela me lembra. Bendito esquecimento. Que me traz de volta às raízes. Que me lembra a todo instante: “Você é humano. Tem limitações. E não se esqueça disso!”
PS: Juro que eu ia colocar um versículo para ilustrar essa reflexão, mas ele se perdeu na minha alma.
No amor do Pai,
Roger