A paixão de Ruth
A seca daquele ano havia sido devastadora. Tinha trecho do Chico que dava pra atravessar a pé! Gado morrendo, fome apertando, nada de trabalho! Assim, Tião pegou Noêmia e seus dois meninos e se aventurou num pau de arara pra São Paulo. Mas eles mal tinham conseguido se estabelecer por aqui, Tião morreu!
Dias difíceis… Noêmia fazia de tudo um pouco, não só pra sustentar a casa, mas pra superar a falta do Tião. Pra não se afundar na depressão, se agarrava à fé e aos meninos, que cresceram e se tornaram homens de respeito. Preocupados com a mãe, decidiram se casar e constituir família. Pra encher a mãe de orgulho, combinaram com as meninas de se casarem no mesmo dia – elas toparam!
A casa agora estava cheia de esperança. No jantar, Noêmia lavava louça, cantava e perguntava toda hora quando viriam os netinhos. A angústia se desfazia em meio à alegria e orgulho que seus filhos lhe davam. Suas noras, Ana e Ruth, viam na sogra um exemplo de força e resiliência. A história de Noêmia finalmente voltava aos trilhos e a saudade do Tião já não trazia tanta dor. Foi quando a tragédia cruzou novamente o caminho de Dona Nô.
Naquela madrugada, o clamor foi interrompido pelo toque irritante do telefone na sala. Ana quase caiu na carreira: “Sim, é a esposa dele!” – disse, enquanto Ruth, ainda de joelhos, abraçava suavemente sua sogra. Sem mais detalhes, se apressaram para o Hospital do Mandaqui, onde o inesperado se confirmou: “São Paulo é assim mesmo, dona… a gente trabalha que nem um cão, pra vir um vagabundo desses e tirar a vida de dois meninos trabalhadores como seus filhos!” – alguém tentava consolar Noêmia que, em choque, sequer chorava. Ana gritava pelos corredores do hospital. Ruth abraçava sua sogra e perguntava insistentemente o porquê Deus faria aquilo com elas… de novo!
Três meses depois, Noêmia continuava sem rumo. A depressão voltara com toda força. Sem dinheiro, sem vontade de viver e brigada com Deus, decidiu voltar pra Sergipe. “Vem pra cá, mulher, esse ano tá bom aqui, choveu que só!” – insistia uma prima otimista. Assim, pegou suas noras e embarcou naquele leito. E foi quase um dia e meio de absoluto silêncio entre aquelas três mulheres enlutadas.
Elas estavam ainda na rodoviária quando Noêmia pediu para se sentar. Uma mesa de cimento serviu de púlpito para o sermão daquela mulher amargurada: “Meninas, Deus me amaldiçoou…” – falava Noêmia com convicção quando Ruth tentou interrompê-la, mas sua sogra continuou: “…e vocês não merecem sofrer por minha causa! Quero que cada uma volte pra sua família!”
Ana se levantou revoltada: “A senhora podia ter dito que nos abandonaria ainda lá em São Paulo, né? Pra que nos trazer até aqui e…” – Ana se perdeu nas palavras e começou a chorar. Abraçou sua sogra, deu-lhe um beijo e sumiu por entre a multidão.
Enquanto Ruth observava Dona Nô absorta fazendo tiras num copo de plástico como quem descasca uma fruta, juntou as mãos de sua sogra e lhe disse com ternura: “Dona Nô, Deus deu, Deus tirou, bendito seja o Senhor!”. Enquanto Noêmia tentava segurar o choro, Ruth prosseguiu: “A senhora tem sido uma mãe pra mim, eu nunca vou lhe deixar!”
Dias depois, Noêmia pediu ajuda a Carlos, um parente distante que tinha se dado bem no ramo imobiliário. Carlos sabia da situação e perguntou como podia ajudar. Sem hesitar, Noêmia pediu um emprego para Ruth e, assim, pouco tempo depois, Ruth estava servindo café naquele luxuoso escritório.
Entre uma reunião e outra, era inevitável o comentário sobre a bonitona de São Paulo: “Ela nem sotaque tem, visse?”. E dentre os pretendentes, apenas um interessava à menina viúva – Carlos! Carlos era divorciado, bem resolvido e também já tinha trocado olhares com Ruth, mas sequer cogitava a possibilidade: “Ela tem metade da minha idade, Júlio!” – desabafava com um amigo que tentava convencer Carlos de que isso era coisa do passado.
Passados 2 anos, Ruth finalmente confessou para sua sogra a tal da paixão proibida. Dona Nô empurrou Ruth para o chuveiro e já começou o sermão: “Tu tá é doida, é!? Tanta desgraça que já me aconteceu nessa vida e tu quer perder uma oportunidade dessa? Você vai pôr aquele vestido novo, ficar cheirosíssima e voltar agora pr’aquele escritório! Só me volte aqui comprometida!”
E foi assim que Ruth e Carlos se casaram e tiveram o pequeno Davi, que restaurou a alegria de Noêmia e reinou absoluto até a chegada dos gêmeos.